Como resistir ao fotógrafo alemão desconhecido:
a produção recente de Ding Musa.

Tadeu Chiarelli – junho de 2008

Costumo brincar que existe um fotógrafo anônimo viajando pelo mundo todo tirando sempre a mesma fotografia: ele coloca a câmara num tripé estático e a uma distância fixa, absolutamente frontal frente o objeto a ser fotografo; ajusta muito bem o foco, cuida para que a luminosidade seja uma, espera que nenhum ser humano atrapalhe o campo da objetiva e... clic.

O objeto fotografado varia pouco: um galpão abandonado, uma casa em ruínas, quando muito uma rua deserta.

Todo mundo, no mundo todo, que se interessa em visitar exposições de arte encontra com a produção desse fotógrafo alemão desconhecido. Na Alemanha, nos Estados Unidos, na Venezuela, no Japão, no Brasil. Se existe um novo internacionalismo na fotografia que veio substituir a straight photography ou então aquela fotografia adoradora do “momento decisivo”, é a fotografia desse alemão.

E normalmente, a fotografia desse anônimo e ubíquo alemão, se apresenta rivalizando com as pinturas mais tradicionais: são quase sempre únicas ou com reduzidíssimas tiragens, são coloridas e imensas e têm uma precisão objetiva que seria, talvez, a única dimensão da “especificidade” da fotografia que nela restou.

Ironias à parte, o que se percebe hoje no mundo todo é que discípulos diretos ou indiretos do casal de artistas alemães, o casal Hilda e ... Brecher, - fulano, beltrano e sicrano –, com suas fotografias solenes e frias, herdeiras, em última instância, das já longínquas fotografias documentais de indústrias alemãs do século XIX, arrebatou o olhar de muitos fotógrafos espalhados pelo mundo todo, cegando-os para qualquer outra possibilidade do ato de fotografar. Daí a impressão de que um único artista alemão freqüenta todo o planeta, fotografando os previsíveis interiores vazios, as fachadas ruinosas, os detritos da sociedade industrial ou pós-industrial.

Nota-se no trabalho recente de Ding Musa o quanto esse standard da fotografia contemporânea o seduz. Ele também apresenta fotografias vazias de gente. São paisagens da metrópole e tomadas de cenários ermos sempre sedutores pelas dimensões consideráveis, pelo colorido complexo...

Ding parece que às vezes é tomado pelo espírito daquele anônimo alemão ou então é por ele seduzido a tornar-se dele uma espécie de clone. Mais um.

No entanto, algo na constituição de suas fotografias atuais parecem querer resistir a esse processo de possessão. Alguns procedimentos, quer na produção das imagens em si, ou quer na configuração final das mesmas, parecem estratégias de uma determinada resistência autoral que busca se afirmar e suplantar o modelo reinante na cena fotográfica contemporânea.

E quais seriam os subterfúgios usados por Ding para escapar ao modelo da vez?

Sem estabelecer uma hierarquia, é possível perceber na produção do artista, três ardis para o estabelecimento de seu processo de resistência.

Em primeiro lugar, o uso confortável e cheio de intimidade que Ding faz das possibilidades da fotografia digital. Está aí uma estratégia interessante que somada, às seguintes, serão o seu principal trunfo frente à potência do paradigma imposto pelo mercado. Em muitas de suas produções, Ding abusa da capacidade da fotografia digital naturalizar a estratégia da fotomontagem; de transformar uma simulação em “verdade fotográfica”, em “documento”. Aqueles céus não são flagrantes fotográficos, são fraudes que propiciam o estranhamento da “verdade” fotográfica.

Alguém poderia afirmar que aquele fotógrafo alemão globetrotter muitas vezes se vale do uso das potencialidades do programa digital para tornar ainda mais “verdadeiras” suas fotos. Sim, é verdade. No entanto, em muitos dos trabalhos de Ding, ele alia à fotomontagem naturalizada pelo processo digital, a fotomontagem real- e aí estaria a sua segunda estratégia de resistência. Muitas vezes, ao lado de uma fotomontagem virtual, Ding acopla outra fotomontagem virtual, propiciando ao espectador uma narrativa que, então, não se dá apenas “dentro” de cada fotomontagem determinada mas, também entre duas ou mais fotomontagens.

Com esse estratagema, Ding sobrepõe ao (suposto) anonimato requerido pelo padrão da fotografia alemã contemporânea (que ganhou o mundo, como constatei), uma dimensão de subjetividade e arbitrariedade que parece não tem medo de se expor, de revelar-se (e aqui não uso uma metáfora fotográfica).

Ding, hibridizando o parâmetro da fotografia “mais do que straight”, da fotografia alemã contemporânea aos pressupostos da fotografia narrativa dos anos de 1960 e 70 – sicrano, beltrano, etc. –, mesmo não se utilizando do retrato de figuras humanas, mesmo abusando das grandes dimensões, etc., contabiliza, no final, uma nota estimulante de reação à ameaça de se transformar em mais um seguidor anódino do (pen)último grito da moda fotográfica internacional.

Essa característica de insubordinação de Ding frente ao estabelecido vem muito da sua extrema juventude, que o mobiliza para experimentações, mesmo quando o campo da arte mais atrelada ao mercado aponta soluções tão garantidas de sucesso rápido, sem inquietações. Ding ainda testa o meio fotográfico, agora tornado ainda mais complexo e sedutor com a entrada do digital. E nessa série de testes, de repente irrompem achados que merecem aqui serem comentados, dado o interesse que trazem para se pensar a fotografia hoje.

Refiro-me aqui a fotografias como aquela que se intitula Melancia 2. Nela é visível como o jovem Ding ainda se mantém no delicioso processo de busca, de articulação de um repertório visual em que entram não apenas a vasta cultura fotográfica que possui, como também seu interesse pela tradição pictórica e uma juvenil consciência social que se preocupa salutarmente com a miséria e o desperdício em um país como o Brasil. O resultado? Uma das mais interessantes naturezas-mortas produzidas no campo da fotografia no país, nas últimas décadas. Ali é notável como o saber pictórico se encontra com o saber fotográfico, fazendo com que, dessa junção surjam na memória as naturezas-mortas de um Agostinho José da Mota. Essa foto o onipresente fotógrafo alemão desconhecido não ousaria fazer. Graças a Deus!